O FAMIGERADO COMUNISTA
por Leila
JinkingsÉramos cinco, todos menores de dez anos, em 1964. Na rua onde morávamos, tinha de tudo: comunistas, fascistas, contrabandistas e sabe-se lá mais o quê. Na esquina, os filhos de um juiz xingavam quando passávamos: “Ei, filhos de comunista!”. A princípio nem sabíamos de que éramos xingados, mas logo fomos a meus pais saber o que era comunista.
À
tarde saímos para a rua armados, prontos para o embate. Todas as tardes
passeávamos de bicicleta ou íamos para a praça, sempre passando pelo território
inimigo.
-
Ei, filhos de comunista!
-
Tu é que és filho de fascista! Filho de fasciiistaaaa!
Havia
na rua um colega nosso que brincava de bicicleta e “pega ladrão”, cujo pai era
reacionário. Ele, nesse dia, chegou excitado e foi logo se dirigindo a nós.
Estávamos os quatro irmãos mais velhos e dois primos de nossa idade - Huáscar e
Bolívar. Falou: “O pai de vocês, ó: (fez
um quadrado com os dedos da mão, significando xadrez, cadeia) tá preso. Pegaram
ele lá no Rio de Janeiro.”
Corremos para casa a perguntar a mamãe se era verdade o que havíamos escutado. Mamãe explicou que não era verdade. Aquilo eram apenas boatos que os milicos inventavam para fazer terrorismo com os familiares dos comunistas.
Mas,
no dia seguinte, o mesmo colega, apesar de ter “pegado uma carreira” dos meus
primos, veio com nova história: “Olha, o pai de vocês foi assassinado, ele
fugiu e levou bala lá na Cinelândia. Estava vestido de estudante.”
Fomos chorando para casa e mamãe tentou nos tranquilizar. Nas rádios e na televisão, no entanto, os repórteres davam a notícia e os mais excitados se referiam a ele como o “famigerado comunista Raimundo Jinkings”. Ela falou que ia telefonar para meu pai e que ele falaria conosco. Mais tarde ela nos avisou que papai viria nos visitar, mas em segredo, pois os milicos queriam prendê-lo porque lutava para que os pobres tivessem os mesmos direitos que nós.
À
noite, mamãe nos chamou para o quarto que ficava nos altos e dava para o
quintal. Foi muito emocionante encontrar o papai, que nos aguardava. O quarto
estava na penumbra, não se podia acender a luz. Talvez houvesse um abajur ou uma
vela, pois podíamos enxergar muito bem o papai. E, mais importante, senti-lo.
Ele nos abraçou muito, apresentou o camarada que o acompanhava e falou que
estava tudo bem, mas que ele estava escondido para que os milicos não o
pegassem, porque ele era amigo de Jango e dos comunistas.
Ele estava vestindo um macacão de operário, tinha os cabelos crescidos e estava barbado. Carinhosamente, nos tirou as dúvidas e fez as recomendações que qualquer pai faz, do tipo “sejam obedientes”, “ajudem sua mãe”, além das que só um pai como ele faria: falou que não precisava explicar nada para ninguém e nem deveríamos contar que ele nos visitara, para que não pressionassem a mamãe. E que o importante era que estaria sempre em contato conosco por meio da mamãe.
Jamais
esqueci esse momento. Me senti companheira e amiga do meu pai. Muito orgulhosa
dele, da sua coragem e da sua generosidade.
Leila Jinkings
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Veio
o Golpe de 1964 e papai “viajou”. Nossa rotina não mudou: escola pela manhã,
trabalho escolar até 4 da tarde e depois rua, além, claro, da guerra com
os reacionários (essa palavra também aprendemos com papai e mamãe).
Corremos para casa a perguntar a mamãe se era verdade o que havíamos escutado. Mamãe explicou que não era verdade. Aquilo eram apenas boatos que os milicos inventavam para fazer terrorismo com os familiares dos comunistas.
Fomos chorando para casa e mamãe tentou nos tranquilizar. Nas rádios e na televisão, no entanto, os repórteres davam a notícia e os mais excitados se referiam a ele como o “famigerado comunista Raimundo Jinkings”. Ela falou que ia telefonar para meu pai e que ele falaria conosco. Mais tarde ela nos avisou que papai viria nos visitar, mas em segredo, pois os milicos queriam prendê-lo porque lutava para que os pobres tivessem os mesmos direitos que nós.
Ele estava vestindo um macacão de operário, tinha os cabelos crescidos e estava barbado. Carinhosamente, nos tirou as dúvidas e fez as recomendações que qualquer pai faz, do tipo “sejam obedientes”, “ajudem sua mãe”, além das que só um pai como ele faria: falou que não precisava explicar nada para ninguém e nem deveríamos contar que ele nos visitara, para que não pressionassem a mamãe. E que o importante era que estaria sempre em contato conosco por meio da mamãe.
Leila Jinkings
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8 comentários:
Lindo!
Puxa, mamae... To aqui chorando emocionada com seu depoimento de infancia... Nao eh um choro triste... Eh uma mistura de orgulho de ser descendente desse homem, de indignaçao pelas injustiças que uma familia pode sofrer simplesmente por ser o que eh. Indignaçao por ter que admitir que a especie humana pode ter uma natureza tao perversa, prepotente... autocentrada. Ignorancia de si mesmo...
Lamento ter conhecido meu avo bem menos do que eu gostaria... mas de alguma forma, nos gestos mais sutis, na sua timidez que deixava escapar opinioes nas formas mais serias e as mais debochadas. Mas tudo isso era ele, e sem que eu me desse conta, ele me inspirava.
Talvez apenas por ter criado uma familia que me gerou, esteja em cada um desses descendentes. Gens e valores.
Talvez eu seja romantica e idealista como ele. Capaz de fazer escolhas muito drasticas para ser leal ao que acredito. Foi o que ele fez.
A diferença entre nos foi o "como" escolhemos lutar... Mas eu escolhi lutar, e eh importante demais pra mim ser leal a essas escolhas.
Lindo seu depoimento. Eh maravilhoso, aos 31 anos, ainda poder descobrir historias desconhecidas sobre parentes tao intimamente proximos. Me deu vontade de saber muitas outras lembranças da filha desse famigerado comunista...
Beijo terno e emocionado.
Maevinha
Leila
Ainda estou sob o forte impacto emotivo da leitura do post. Revivi velhas dores,em compensação também recordei a força de velhas amizades e da solidariedade de leiais companheiros. Uma lealdade que não se expressava apenas para com a sua família, amigos ou companheiros de militância, mas, àquela lealdade que faz existir a diferença entre o Homem que honra e luta por seu semelhante, e aquele que vê o mundo a partir do próprio umbigo. O Raimundo foi um Homem e é o que teu relato nos mostra com beleza e emoção.
Grato e um forte abraço de um
outro famigerado comunista
Tive o privilegio de conhecer Raimundo Jinkings; guardo bons souvenirs de sua luta!
Lembro do Partido...
Que bela passagem a dele aqui na terra...
Linda e merecida homenagem, Leila!
Mesmo nao sendo eu "comunista" rs
Comungamos da mesma luta;
Um mundo melhor,
Mais igual,
Mais bonito; onde as pessoas possam ter as mesmas chances, oportunidades com senso de justiça.
Isso, justiça!
Obrigada pelo texto justo!
Meu abraço sem perder o laço!
Roselena Peres - França
Por artes das surpresas da vida cheguei ao blog de Raimundo Jinkings, cheguei a esse terno e belíssimo relato de pedaços da vida do Famigerado Comunista e de sua família.
Cresci e me enterneci.
Fico-lhe muito grata por compartilhar tanta integridade e a beleza de vida que foi a de seu pai.
Maria Lucia
Leila, só agora pude conhecer este blog.
Tive a oportunidade de conviver com o Jinkings. Ele foi uma das pessoas mais autênricas e corajosas que este Estado já pariu.
Lembro-me de quando a ditadura, já em seus estertores finais, mandou metralhar as bancas de revistas e a Livraria Jinkings, refúgio dos comunistas. Durante muitas campanhas eleitorais estávamos sentados lado a lado. Cada um defendendo sua sigla mas, sobretudo, lutando para apresentar o melhor ao povo do Pará.
Quando Jinkings se foi, tive uma sensação de perda muito grande porque, como ele, existiram e existem muito poucos.
Gostaria de entrar em contato com vc pois me interesso pelo do "Partidão".
José Carlos disse...
Leila, me deixaste emocionado com esse post sobre o famigerado comunista, meu amigo Jinkings! Poxa, que barato, uma viagem no tempo, foi o que eu fiz ao ler teu texto. Bjs
Zé Carlos Gondim
Minha mãe um dia contou a nós esta história com lágrimas nos olhos, lembro-me até hoje disto, ela dizia pra mim filha a Isa (Maria Isa Tavares Jinkings) é uma guerreira. Hoje me pergunto como um "FAMIGERADO COMUNISTA", poderia ter construído uma família tão linda, tão unida, tão companheira, tão cúmplice com os seus, com os amigos, comigo que sempre tive deste meu primo na sua seriedade, a atenção, o carinho, a generosidade, em todos os momentos que pude privar e precisar, ou até mesmo quando saía do colégio e não tinha nada o que fazer ia fuçar na livraria, tomar um cafezinho com o Arthur (Arthur Valente), no escritório, quantas lembranças. Receba meu carinho, minha gratidão, minha admiração pelo grande homem que você foi junto com minha prima, saudades.
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