O comunista motoqueiro e a sopa de letrinhas
Karina de Oliveira Leitão
As declarações de ódio à esquerda, aos comunistas, aos
petistas, não me fazem raiva, me tiram as forças, me tiram a alegria, me tiram
a vontade de argumentar.
Nesse fim de semana, um grupo de kamaradas da Peabiru TCA me
deu o privilégio de entender isso. Numa sessão de balanço para eles, eu acho
que vivi uma regressão, uma oportunidade única de entender o meu passado e as
raízes do meu amor pelos comunistas, pela esquerda.
Minhas irmãs e eu tivemos praticamente todos os nossos
livros didáticos doados por uma família linda e grande de queridos comunistas,
que durante um tempo, foi a minha família. E hoje, é um farol de afeto que
ainda ilumina o meu olhar. E enche a minha estante com livros que agora eu
felizmente posso comprar.
Essa mesma família tem um membro, o comunista motoqueiro,
que se encarregava desse cuidado. Esse membro não se preocupava se a gente
estava só comendo letras. Ele também chegava com comida quando a gente menos
esperava. Também levava para passear quando sabia que as crianças deviam estar
confinadas em casa nas férias. O motoqueiro e seus irmãos aprenderam com o pai
e a mãe a cuidar dos outros. Na minha fantasia, eu acho que eles se dividiam
para cuidar da cidade toda, cada um se encarregava de um pedacinho.
E assim, em primeiro lugar, eu aprendi que os comunistas
alimentam criancinhas com letrinhas, para depois ouvir a farsa nauseante de que
eles comiam criancinhas.
E a Livraria Jinkings, na Rua dos Tamoios em Belém do Pará,
parecia o paraíso. As letras de concreto que ornavam a fachada davam um ar de
modernidade que nenhum lugar da cidade jamais teve, jamais terá.
Era tanta coisa para agradecer a cada vez que o ‘agente’
comunista nos chamava no início do ano letivo para levar a lista anual dos
livros e buscar os que eles podiam doar, que acho que eu nunca consegui dizer
obrigada.
Eu ficava grata, envergonhada, e ao mesmo tempo, encantada
com aquelas mesas e estantes de livros, sonhando em engolir cada um. Eu tinha
curiosidade por tudo, pelos lançamentos nas mesas logo à entrada, pelos livros
amazônicos que nem na escola eram mencionados, mas a sessão infantil, mais ao
fundo da loja, era um universo que parecia fora do meu alcance. De quantas
vidas eu precisaria para dar conta de ler tudo aquilo? Mais ao fundo da loja,
lá no depósito, trabalhava o meu tio. O meu tio mais próximo, mais tímido, mais
introspectivo, que se não fosse a família de comunistas, dificilmente
conseguiria ter tido um emprego formal na vida, nem teria guardado e usado todo
o dinheiro que juntou na vida para os sobrinhos. Esse tio, era tio de sangue,
era ateu, e assim, eu que nasci numa família mariana e franciscana, aprendi que
os ateus são bons... E que os religiosos não têm o monopólio da bondade. Mas
essa já é outra história.
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Nota minha: Muito nos comove o texto de Karina, como comunistas que somos e, principalmente, pela família que formamos.
Muito obrigada, querida Karina, pelo belo texto e pela sensibilidade que ele exibe, além do belo e raro sentimento de gratidão.